sábado, 26 de junho de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [18] por Adília César

 

Durante toda a noite os fogos de artifício, os clamores alegres da cidade, o ruído dos escaleres, as músicas, encheram a baía de vida.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Satírico "Ostracom" em que o rato é servido por um gato,
Novo Império (1567-1085 aC), Museu Nacional do Cairo

*

NA RUA,

os gatos e os ratos entretêm-se: brincam, correm, guincham. Curiosamente, são os gatos que correm atrás dos ratos. Não sei explicar porquê, uma vez que os perseguidos têm uma aparência bem mais assustadora do que os perseguidores; porque não é o processo revertido, pelo menos uma vez? Adiante. Meti na cabeça que só havia de escrever sobre a vida, mas a morte veio intrometer-se. Enquanto me demoro nesta visão doentia, deixo cair a caneta e não faço qualquer esforço para a apanhar. No chão, ela parece um risco do meu tédio, uma cicatriz à espera de cura.

 

*

OS GATOS E OS RATOS

continuam no seu ludismo animalesco. Correm, guincham. Ali, não há inocentes. Creio que estão a brincar à sobrevivência do mais forte. Ainda não percebi qual é o mais forte, porque os gatos não conseguem apanhar os ratos e estes escondem-se em buracos pequeninos, ficam muito quietos até que os gatos se vão embora. Bem, de vez em quando um é apanhado… Os gatos e os ratos também ainda não perceberam que estão a lutar com os gatos e os ratos do futuro, os quais serão iguais aos do presente, ou seja, aos do passado. Quer dizer, através da acção-jogo de perseguição desenfreada provocam um comportamento de imitação dos mais novos. É uma circularidade na adaptação ao real do gato e do rato, enquanto divergências da fauna mamífera. Isto é genial, porque todos eles estão a viver o passado, o presente e o futuro, ao mesmo tempo. Um paradoxo da existência.

 

*

A VIDA

pode ser uma falácia tendo em conta o conceito de “futuro”. O futuro já chegou, com muitos adjectivos de modo acoplados e uma fina película de suor nocturno que teima em permanecer agarrada ao pêlo, à pele. Os humanos também são animais, mas uns são mais parecidos com os gatos e outros com os ratos. O cheiro a morte instalou-se, não desaparece com facilidade, é uma coisa irremediavelmente caída no silêncio e ecoada na linha do tempo. Não se pode dizer adeus ao futuro, mas pode-se tomar novas decisões: o rato pode decidir ser gato e o gato pode decidir ser rato.

 

*

JÁ SABES

que pergunta deves fazer: “o homem é um deus em ruínas” como sugeriu Ralph Waldo Emerson, ou o homem, sendo uma construção, está permanentemente em ruínas? Basta-se a ele próprio ou não? Sabes as perguntas, mas não sabes as respostas. Muito bem, vais no bom caminho. Não tenhas medo, os gatos e os ratos estão lá fora. Há festa na cidade, mas não te diz respeito. Há fogo de artifício para enganar os tolos e música ensurdecedora para que as palavras da mudança não se ouçam.

 

*

TU OLHAS

a caneta caída no chão e sorris. Pensas que és um homem com a cabeça cheia de sábias convicções. Acreditas que vais escrever um poema para o futuro sem necessitar de profetas da luz ou da escuridão. Tolo. É noite, os ratos afogaram-se nas águas paradas e os gatos voltaram, sorrateiramente, para os colinhos fofos dos seus donos. É demasiado tarde, por hoje já não há nada a fazer. Afinal, uns correm mais depressa do que os outros por uma questão de vaidade, não de sobrevivência. O ego é um bicho perigoso, ainda que esteja enroscado, a ronronar, no ninho do seu inócuo hospedeiro.

 

*

TU OLHAS

e tentas ler as informações relativas ao evento. Sorris. O cartaz é abominável, as cores dos caracteres parece que gritam, as poses dos intervenientes ficaram presas num erro de coreografia publicitária. Tudo é abominável: os acontecimentos e as suas intenções. O que é a vida? As respostas são filosofemas falhados como aqueles gatos que nunca voltam para casa.


Adília César, 

in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_297

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [17] por Adília César

 

E nós, aqui, a escrevinharmos não sei que coisinhas minúsculas, que, apenas rabeiam um momento sobre o papel, são logo pó imperceptível!... – Você não tem vontade de se atirar a um poço? Eu tenho.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)


Blasphemous Enemies Concept Art - Juan Miguel López Barea



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ESTRANHO

nome para o meu poema magro e áspero, como se a luz amanhecesse desbotada, ausente de pontos cardeais ou de velocidades de ventos. Sem referencial, sigo a marcha do desnorte em câmara lenta, numa bobine antiga de um filme mudo de outra época, com imagens imperfeitas e holofotes sujos de insectos desviados do seu rumo. Estranho sentido para o meu poema, vazio e redundante, como se a luz desistisse dela própria e se transformasse em espiral de escuridão.

 

*

UM REFERENCIAL

enganador, perdida que estou neste lugar intermédio, em vésperas de nada acontecer. Dizes que és idioma poético. Dizes que tens a verdade dentro de ti. Dizes que és um fazedor de milagres. Brilharias sempre assim nas manhãs indecisas? Ofuscarias humanos e anjos por entre instantes da loucura? Luz, um referencial de alegria para o meu poema sombrio. Uma teoria de tudo. Funde-se o verso nessa intensidade.


*

MAS

não existem zonas lúcidas quando o mel escorre em vão. O que é visto nunca nos deixa do outro lado deste pequeno mundo cheio de chapéus pretos sem cabeças dentro. Nas ruas rolam cabeças improváveis, acamadas no mel que dá a volta ao mundo, todas iguais e inúteis, sem pensamentos por dentro. Os chapéus pretos de tamanhos diferentes parecem dominar a paisagem ainda dourada e quente, em veneração ao deus sol, e riem. Oh… como riem. De quê?... Afinal, há uma única verdade, decadente e sem qualquer espécie de humor: aquilo que existe afinal não existe; não há mundos feitos de chapéus pretos; tudo o que vês é a descrição de um caos definitivo, uma gélida planície de cabeças a rolar nas ruínas das ruas desertas. Debaixo dos meus pés, em triunfo, a impermanência da vida.

 

*

QUERIA

não ter medo. Um poema é sempre demente, ainda que calado em murmúrio traiçoeiro. Sustenho a respiração do poema e ele cai em câmara muito lenta. É certo que não há forças de gravidade no plano irracional, mas quando cai o poema parte-se devagar e eu parto-me com ele. Por vezes, conserto o poema com a baba da minha demência e ele aceita o curativo. Entende a sua própria resignação como vitória das palavras humedecidas, mas não: é apenas um episódio surreal, um triste e anónimo poema colado com cuspo.

 

*

EU,

cada vez mais partida e não consigo consertar-me. O que se afoga é o que ninguém lê. O que se fragmenta é a compreensão avulsa da literatura. Das palavras apenas se deviam erguer as dúvidas, nunca as respostas. Que interessam as certezas se não souberes que pergunta deves fazer? E regresso à profundidade de tudo o que ainda não tem luz: o poço da indiferença.


Adília César, 

in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_295

 

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [16] por Adília César


Por isso preferiu permanecer calado – tendo por consolação entrever «o norte para que se inclina a divina bússola do espírito humano».

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Salvador Dalí, Figura Cubista, 1925

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COMO NOS OLHA

este olhar parado, esta íris de nudez clandestina, o véu que desoculta a vida a entontecer. A vida… é um turbilhão e nós rodopiamos na periferia, na ânsia de chegar ao epicentro. Dança menina dança na tua saia redonda. Que cintilava olhos de ser coisa viva. E nós ficaremos aqui a olhar. A vida.

 

*

VER

a luz e a sombra. As esquinas, os cantos, a verticalidade do teu espírito. É um espectáculo com morte por dentro, porque toda a coisa viva está, inevitavelmente, quase a morrer. Assim, devagar, como restolho ao sol. Mas este é o teu momento presente e esta é a nossa expectativa de acumulação, uns em cima dos outros, em forma de pirâmide. Se conseguires trepar por cima dos nossos corpos, a cúpula cimeira será o trono dos teus momentos futuros. Tenta. Vais ver que vale a pena.

 

*

SENTIR

uma emoção emendada à última hora. O cão rosna com afinco e sente o teu medo. Fecha os olhos. Ouve o zumbido do calor na parede do aquário onde te refrescas. À tua volta, a multidão corre desenfreada e não sai do mesmo sítio. É um caracol monstruoso de múltiplos rumores. Repara, amanhã tudo isto estará apagado, silencioso. Sentirás então a perspectiva de um anúncio verdadeiro, a sensação de morte nesse peso que carregas nos ombros. Respira. Ainda não é a morte: é apenas o teu coração atulhado de mentiras, é a tua cabeça enroscada em tantos rostos falsos.

 

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O NORTE

pode ser uma imagem disruptiva que orienta o teu espírito. Afinal, a tua mente é caótica. Sangras os teus desconcertos diários e a ordem melódica não te agrada. Rompes com as normas impostas e procuras outro rumo; o Sul, talvez. Tentas, tentas, mas a espiral que te aprisionou quando ainda eras uma criança não te liberta. O que resta é uma imagem no horizonte que se altera a cada instante e que tu não consegues agarrar.

 

 Adília César, 

in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_293

sábado, 15 de maio de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [15] por Adília César

O riso é a mais útil forma da crítica, porque é a mais acessível à multidão. O riso dirige-se não ao letrado e ao filósofo, mas à massa, ao imenso público anónimo. É por isso que hoje é tão útil como irreverente rir das ideias do passado: a multidão não se ocupa de ‘ideias’, ocupa-se das ‘fórmulas visíveis’, convencionais das ideias.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

* 

 AS IDEIAS

são como as pessoas que as idealizam. As ideias velhas vêm do passado e ficam por ali, a aquecer a garganta, como um cachecol de lã. Por vezes, surge uma ideia nova que insiste em vestir o mesmo corpo, como um lenço de seda. Não sabemos o que fazer com tantas ideias, com tantos adereços. Tentamos guardá-las nas prateleiras do cérebro e nas gavetas do coração, mas elas limitam-se a vaguear pelas ruelas do silêncio e da solidão. Às vezes, as nossas ideias vestem-se com palavras. Neste sentido, há palavras de couro, gaze, lã, seda e outras tramas desmoronadas. Outras vezes, o espírito encerra uma violência insuportável e ainda alguns preconceitos, tão, mas tão inúteis: as palavras de arame farpado ostracizam o inefável humano.

 

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A CONFIANÇA E O CRISTAL

são tesouros sólidos, difíceis de preservar. Os seus constituintes – átomos, moléculas, iões, pensamentos e actos – estão organizados num padrão tridimensional bem definido, que se repete nos seus espaços de permanência, interiores ou exteriores, formando uma estrutura com uma geometria única, sendo que cada pessoa exibe a sua substância mais ou menos confiável. Tanto a confiança como o cristal perecem quando menos se espera, pelo toque brusco, pela vibração exasperada, pelo pensamento estupidificado ou pelo acto enganador. É necessário um apurado desvelo na sua manutenção, sendo irreversível a sua quebra.

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Escultura de Gustav Vigeland - Parque Vigeland, Oslo

 

MAS

também podemos pensar nos panos que cobrem a nudez do corpo e do espírito como um vestuário emocional que nos protege das intempéries relacionais e sociais. Sabemos que esses panos têm as cores dos preconceitos e dos falsos pudores, essas terríveis vagas de desconforto. O que quer dizer que podemos despir as roupas, mas nunca ficamos completamente nus. A nudez é sempre interior. A pele que vês em mim é apenas o contorno do meu corpo vestido com as ideias que extravasam as fronteiras da minha humanidade.

 

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 SE

nenhuma perspectiva sobre o mundo é definitivamente verdadeira, apenas te resta rir da minha vaga desorientação, da minha tentativa de levar a vida a sério e, ao mesmo tempo, de não a levar a sério. Rio e choro, tento agarrar o mundo e também o abandono. A vida é tão irónica e presunçosa. Conhece a relação entre a morte e a beleza, entre o mistério e o sangue derramado. O paradigma será sempre de expressão auto-destrutiva do amplo universo paradoxal que existe em cada pessoa. Destruir para poder construir. E assim se passam os dias. O tempo o tempo. A vida a vida. Eu e tu.

 

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 AFINAL,

somos murmúrios do tempo, depois de uma breve interacção com as alegrias e as tristezas dos que me rodeiam e dos que nem sequer sabem que eu existo. Somos ironias ecoadas no infinito cosmos até aos confins da última luz, aquela estrela que guardámos para rir no fim, em luminosa companhia. Eu e tu vestidos de nada. Tão vivos, tão fascinantes, passamos incógnitos por entre uma massa de ideias convencionais face à brevidade da nossa passagem. E de repente, tomamos consciência das infinitas possibilidades ao nosso alcance. Assumimos um estilo, uma forma de aparecer perante os outros. Tu e eu, a rir.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__291

sábado, 1 de maio de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [14] por Adília César

 

Em Arte, a copiosa, exuberante, luxuosa e florida fantasia cansa, esquece e passa – e só há eternidade para a beleza pura e simples.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Fragmento de "As Folhas Mortas" (1956), de Remedios Varo

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INESPERADAMENTE,

um convite. Meia dúzia de figuras de estilo trocadas entre nós e surgiu a ideia de um jantar. Aceitei com uma genuína expectativa. Afinal de contas, não é todos os dias que surge um poeta na vida de uma mulher. Sentia-me como uma personagem glamorosa de uma peça em estreia absoluta, no palco mais badalado da cidade, e possuidora de um elegante fascínio. Em suma, pronta a viver uma cena memorável. A boca sabia-me a algo nunca antes saboreado, como uma fruta exótica sem nome. E depois esquecer e voltar à vida normal. Este seria o primeiro passo numa sucessão de eventos que viria a mudar a minha desinteressante existência, no que diz respeito a relacionamentos com homens. Nunca tinha conhecido um poeta. Mas mesmo sem nunca o ter visto, tendo em conta que nos tínhamos encontrado de modo virtual, eu conseguia ver nitidamente o contorno do rosto, a cor da pele, os gestos lentos, a voz macia, a inteligência perspicaz. Um boneco virtual-vivo para o meu prazer, feito à medida da minha fome. Seria um jantar totalmente planeado com o objectivo de comer tudo a que tivesse direito. Nem que fosse preciso pagar um preço: tanto esforço para uma única noite, como uma peça de teatro que é representada no momento da estreia e nunca mais se repete. Um evento único.

 

*

A MINHA CURIOSIDADE

era voraz. Comecei a preparar-me vinte e quatro horas antes. Depilação, exfoliação da pele e massagem, cabeleireiro, unhas de gel com brilhantes. Vestido decotado e justo, pelo joelho. Sapatos de salto alto. Meias de ligas e lingerie a estrear. Aroma denso de rosas. Vermelho total, mas com classe. Perfeito. Uma provocadora elegância. Ousava querer causar uma impressão semelhante a uma tatuagem vermelha inscrita no corpo de um dos poemas dele. Dei por mim a imaginar que tudo poderia mudar, que os meus esquemas mentais ultrapassariam a banalidade dos meus dias e das minhas noites, e que a poesia me levaria a um submundo de descoberta de deleites. Do previsível à surpresa. Uma viagem em contramão. Mas se o encontro fosse um autêntico desastre, sem qualquer hesitação eu sairia airosamente de cena, tal como já havia acontecido noutras situações similares, mas desta vez para sempre, deixando um vermelho inesquecível. Uma imagem de marca.

 

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VESTIDA

com o meu vermelho delicioso e outros adjectivos, estava decidida a apropriar-me de todos os advérbios de modo que conhecia, adequadamente aplicáveis a este evento tão peculiar. Não há palavra mais sedutora do que um advérbio de modo bem deglutido. Sentia uma inspiradora abertura a um mundo que eu não dominava, estando tão desejosa para enveredar definitivamente pelas vivências do prazer fora de casa, em detrimento das horas solitárias perdidas em frente da televisão. O entusiasmo corroía-me por dentro e dotava-me de uma autoconfiança que parecia roubada a outro tipo de mulher que eu nunca tinha sido. Via essa mulher que não era eu, no espelho, em frente do qual montei o cenário com os adereços necessários: uma mesa e uma cadeira, destinadas a ensaiar o encontro. Respirei fundo e preparei-me, tentando assumir a personagem de femme fatale, de acordo com a primeira parte do meu manual de instruções, tendo em conta os conhecimentos adquiridos ao longo da última década, estagiados nos inúmeros encontros que experienciei. Manter a calma e a postura. Inclinar levemente o rosto para o lado direito. Sorrir languidamente em jeito de mulher-menina, com um toque de ousadia, mas não demasiado. As pernas levemente entreabertas e receptivas aos pequenos toques acidentais. Essa seria a chave do enigma: uma subtil disponibilidade corpórea. Ensaiei mil vezes. E outras mil ainda, ao longo da tarde. Finalmente, o momento do triunfo: era isto. A mulher que não era eu e que agora via no espelho, era eu. Estava pronta.

 

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A MESA INTIMISTA

era o prenúncio da aventura. O centro do alvo da minha jogada. Avancei, coberta de perfume e de confiança. Uma cenografia que parecia agora abrir uma cortina de fumo misteriosa a envolver a minha presença. Sentei-me o mais graciosamente possível, pronta para qualquer eventualidade, sem dizer uma palavra. Ele já tinha chegado. Lia um pequeno livro de capa brilhante, com umas pequenas linhas de versos nas páginas em branco quase total. Uma poesia depurada e concisa, bem contemporânea. Por certo, de algum poeta da margem publicado numa editora alternativa. O meu sincero interesse pela literatura e os conhecimentos adquiridos com centenas de horas dedicadas à leitura seriam úteis para o início de conversa. Quebrar o gelo e mostrar alguma inteligência. Ele apresentava um certo ar de esfomeado, um não sei quê de inconveniente e, de repente, sem parecer dar-se conta da minha presença, comeu um poema inteiro. Pura e simplesmente, comeu-o nu e cru. Parecia professar aquela inclinação semiótica da obsessão doutrinal com que tendencialmente se dissecam os signos da linguagem, transformando-os em sistemas de significação, a roer os corpos dos sujeitos e dos predicados, como se nada mais houvesse a fazer para cumprir uma existência poética e abstracta.

 

*

OS MEUS PENSAMENTOS

eram boomerangs de interrogações. A poesia também serve para comer? Ou a apreciação de um poeta deve ter em conta um certo hermetismo dos sentidos? Estaria eu perante um fenómeno cultural? Ou a ponte que une o acto expressivo e a obra de arte vai implodir numa orgia? Ele era agora um ser que transbordava uma inquietude inviolável e infinita. Uma estética racional do tempo silencioso cheio de poesia. O nada que é tudo, nos pensamentos do futuro que agora nos pertencia. Uma a-realidade congénita e doentia. Olhava-o perplexa e o desejo vermelho era agora assombrado pelo medo, pela angústia do seu domínio sobre mim. Um prisma de novas cores, alteradas pelas emoções renovadas. Precisamente o contrário do que eu pretendia. Uma jogada terrível e acumuladora de triunfos que não faziam parte do meu universo estratégico. Não conseguia pensar. Quais eram as regras do jogo? Estavam os dois jogadores em pé de igualdade, munidos dos mesmos conhecimentos e dotados de uma inteligência equiparável, de forma a jogarem um jogo limpo e justo? Ou o jogo do amor é sempre desigual? Ele era, de facto, um homem rude – um poeta?! – a comer directamente do pensamento para as mãos, sem regras, a destruir toda e qualquer estrutura sintáctica. O molho silencioso a escorrer pelos seus dedos e a secar nos cantos perversos da boca léxica. Na minha frente, um canibal de palavras.

 

* 

APÓS O CHOQUE INICIAL

hesitei sobre a consciência fonológica adequada à especificidade do discurso, a expressar em tão surreal circunstância. Abri a boca para dizer “ah” ou outra onomatopeia qualquer e naquele preciso momento, ele inclinou-se sobre o meu rosto enjoado e depositou na minha língua o poema mastigado, uma papa de palavras ainda vivas, que clamavam por misericórdia. Uma surpreendente alegoria. Uma poesia amarga e desconfortável dissolveu a minha interioridade falsa e a abordagem daquele poeta desconhecido fez estremecer o espelho onde ainda me reflectia. A imagem da mulher sedutora estilhaçou-se no meu coração, ansioso e renascido. Um mal estar por bem querer ser. Uma extravagância física e emocional. Um consenso transgressor, entre eu e ele. Uma provocação perturbadora a fazer ansiar por mais. A criar dependência, não na mulher que eu queria ser, mas na mulher verdadeira que eu era, na mulher que ele agora via. És um poeta? És mesmo um poeta? Então quero conhecer-te, ler-te melhor. Após a paradoxal sucessão de eventos a que me obriguei a fazer parte, atingi o ponto sem retorno e tomei a decisão mais importante da minha vida. Talvez eu faça uma viagem a esse sabor metafórico tão sombrio, mas nunca mais aceitarei um convite teu para jantar. Sim, eu sei, a simplicidade não faz parte desta equação porque a Arte prevalece no insondável.

Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__289

sábado, 17 de abril de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [13] por Adília César

Eu penso que o riso acabou – porque a humanidade entristeceu. E entristeceu - por causa da sua imensa civilização. (…) O homem de acção e pensamento, hoje, está implacavelmente votado à  melancolia.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

"Melancolia", Edvard Munch, 1892

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ERA UMA VEZ

um homem, dono de todo o universo. Nas manhãs de cada um dos dias, o homem contemplava o seu pequeno-grande mundo, até a lua chegar, tentando encontrar um ritmo de vida, uma pulsão, um sentido. O tempo passou. Os cabelos e as barbas do homem cobriram o seu corpo, deram a volta ao mundo e embranqueceram. Depois de muitos sóis e de muitas luas, o homem sentiu-se cansado, mas não havia chão onde se deitar. Então, deixou-se ficar de pé, naquele lugar pensante que era apenas responsabilidade sua. Os braços e as pernas, alinhados com o corpo, faziam agora parte de uma estrutura mental focada num único pensamento. Um lugar-corpo entranhado por uma memória obsessiva. “Sou um homem. Penso. Estou de pé e não há vento que me derrube”. O corpo secou e toda a matéria se fundiu numa substância hirta e luzidia, de cor indefinida. O vento, que sempre morou por ali, também não desistiu de lutar pelo seu sentido, o sopro da terra. Fez esvoaçar continuamente a claridade dos cabelos e das barbas do homem, que eram vistos de dia e de noite, como se a eternidade fosse apenas isso. Um homem fiel a si próprio. Um ser racional criador de ideais. Um homem vivo transformado numa bandeira, a primeira de toda a humanidade, a esvoaçar na utopia.

 

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A MELANCOLIA

nasceu com os primeiros homens. Que difícil era, para eles, encontrar alegria na escuridão. Desde o século V a.C. que as pessoas temiam o sinistro humor, chamando-lhe bílis negra. Na Grécia clássica Hipócrates acreditava que o corpo era composto por quatro humores – cólera, fleuma, sangue, melancolia – os quais ditavam as disposições e justificavam o carácter psicológico e social de cada ser humano. A cólera implicava um indivíduo irascível; a fleuma tornava-o tranquilo; o sangue dava-lhe vigor; a pessoa taciturna padecia de um excesso de bílis negra e estaria condenada a sofrer consequências nefastas. Galeno, um médico hipocrático da antiguidade disse que os melancólicos «odeiam todas as pessoas que vêem, estão sempre carrancudos e parecem aterrorizados, como crianças ou adultos sem instrução nas trevas mais profundas».

  

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A TRADIÇÃO

disseminada à volta de um conceito de melancolia negativa continua a surgir ao longo da Idade Média, facilitando uma panóplia de pecados, como a luxúria, a preguiça, a avareza e a ganância, observados em comportamentos de possessão demoníaca e desespero blasfemo. Existem muitas evidências relacionadas com a forma como os médicos da Antiguidade e da Idade Média tratavam a melancolia recorrendo a curas mais ou menos dolorosas, mas quase sempre humilhantes: sangrias, purgas, banhos quentes, exercício físico rigoroso, sessões de hipnotismo. No século XX, os médicos passaram a receitar ópio e láudano para vergar os espíritos angustiados, que se tornaram dramaticamente dependentes das misérias curativas: mentes embrutecidas e corpos danificados, portanto. E, assim, a predisposição para a melancolia adequava-se perfeitamente ao estado de espírito filosófico e até ao brilhantismo intelectual que acompanhavam as personalidades geniais de todas as épocas. Seria a melancolia uma condição da genialidade?

 

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MAS

voltemos atrás. Ficino consultou uma obra antiga com o título Problemas, que se pensa ter sido escrita pelo próprio Aristóteles e onde se inclui a seguinte passagem: «Porque será que todos os que alcançaram a eminência na filosofia ou na política ou na poesia ou nas artes são claramente melancólicos?» Seria a melancolia, afinal, uma virtude? um sinal de graça intelectual? Uma não-doença? Em 1489, Ficino começa a escrever O Livro da Vida, um poderoso tratado sobre a relação integral entre a melancolia e a meditação, argumentando a seguinte ideia revolucionária: a tristeza pode ser um catalisador de um tipo especial de génio capaz de explorar as fronteiras mais obscuras do espírito, como por exemplo, as almas filosóficas que conseguem mover-se entre opostos. Estes seres especiais pairam sobre o limbo do invisível eterno e o visível controlado pelo tempo. Para eles, não há meio-termo.

 

* 

QUAL É

a obra interminável da vida melancólica? Se aceitarmos que as pessoas que querem ser felizes a todo o custo e aquelas que tendem para a tristeza em qualquer circunstância não são assim tão diferentes umas das outras, é fácil perceber que estes dois tipos têm receio da fina e frágil película do meio-termo. Não conseguem admitir a angústia das sombras e buscam incessantemente a pálida claridade da lucidez. Se os felizes vão numa direcção, os infelizes vão noutra. São como amantes secretos, criando-se e recriando-se num processo dialéctico. Uns não sobrevivem sem os outros e todos pretendem a paz profunda, a tranquilidade interior e verdadeira, a tolerância face ao princípio fundamental da vida: precisamos dos dois lados do mundo. E se a melancolia persistente revela uma certa alegria na descoberta da tristeza, por fim, desvendada, é possível vivermos no meio-termo, conciliando a alegria e a tristeza através de uma responsabilidade criativa para imaginar relações misteriosas entre opostos.

 

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A IRONIA

desta tese pode conduzir-nos a uma outra teoria talvez mais perigosa: a melancolia ajuda-nos a confiar num mundo que é, sem dúvida, instável e povoado de mentirosos, mantêm-nos honestos.

 

Adília César, 

in https://issuu.com/danielpin.../docs/algarve_informativo__287

sábado, 27 de março de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [12] por Adília César

 Para ensinar, há uma formalidadezinha a cumprir – saber.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

"A Queda" de Paul Klee

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HÁ PESSOAS

que são como arsenais do conhecimento. Guerreiros prontos a lutar em qualquer frente. O seu combate diário é uma guerra constante: a aniquilação intelectual do outro, empanturrado com noções, factos, pontos de vista, ideias, pressupostos, certezas inabaláveis; os outros, derrubados pelas rajadas de sabedoria, atrofiam o espírito, resumindo a activação dos seus neurónios a uma nova app, uma nova série televisiva, um novo vício, uma nova moda.

 

*

ESTÁ NA MODA

decepar cabeças através da retórica. Contudo, a barbárie do acto conduz à consequência inerente à causa, pois por cada velha cabeça decepada nasce, pelo menos, uma cabeça nova – a Hidra de Lerna, recordam-se? – e tudo muda para que tudo fique na mesma. A retórica é um monstro ignóbil, mas pode ser combatido.

 

*

O SILÊNCIO

diz muito sobre a pessoa que o assume. Gosto de pessoas que se remetem ao silêncio e nos influenciam com a sua discrição, não se dedicando nunca a caricaturar a época em que vivem com o ruído da boçalidade. O silencioso detecta a chalaça à distância e rapidamente coloca os pontos nos is. Por vezes, escreve livros que vale a pena ler. Malogradamente, são livros desconhecidos, isentos de uma construção crítica literária. Na verdade, os próprios livros acabam por se encostar a outros universos de silêncio, nas estantes das casas, nas prateleiras das livrarias, nos túmulos das bibliotecas.

 

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A INCOMPETÊNCIA

de críticos e editores perpetua pequenas hidras de lerna na mentalidade colectiva dos leitores. Afinal, o que leva este editor a não querer publicar um bom livro e o que incita aquele crítico a efabular elogios a um mau livro? Multiplicam-se os episódios de consagração dos vaidosos e desvanecem-se as possibilidades redentoras dos silenciados.

 

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O TEMPO

é uma arma avassaladora. É céu e é inferno, enquanto andamos pelo purgatório. Podia inventariar uma longa lista de soluções abertas à educação das mentalidades, mas não cairei na esparrela de ousar que domino e compreendo as circunstâncias que me rodeiam. O silêncio é a minha arma. A escrita e a leitura são a minha salvação porque há, pelo menos, uma certeza que me seduz: a literatura é a ferramenta da humanidade sábia.

Adília César, 

in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__285

terça-feira, 9 de março de 2021

EDITORIAL LÓGOS_BIBLIOTECA DO TEMPO Nº 1 - Setembro de 2017

Imagem de capa de Reinaldo Barros



Editorial

Para dissolver a espuma de futilidade que teima em acumular-se no tempo presente, o grupo LÓGOS – Biblioteca do Tempo tem vindo a reflectir regularmente sobre algumas questões na procura de um entendimento relativo ao meio cultural e literário. Da necessidade de alargar a discussão nesses cenários, surge o primeiro número da revista LÓGOS – Biblioteca do Tempo, enquanto memória escrita de um novo projecto literário e editorial.

LÓGOS enquanto conceito filosófico dá a razão, o sentido humano, o fundamento e o ser de algo, para conhecer, interpretar e criar. Palavra; linguagem; assunto; pensamento; racionalidade; fundamento; causa; valor; argumento; narrativa; razão íntima. Em consonância com estes princípios gerais, pretendemos dar voz ao pensamento crítico e reflectir sobre a experiência literária.

Esta publicação sintetiza algum trabalho de pesquisa que teve início em 2016, tendo em conta os pressupostos anteriores, na plataforma virtual com o mesmo nome: divulgação de textos de autor, realização de entrevistas e partilha de artigos no âmbito da literatura, filosofia e psicologia, tendo como linha condutora a nossa percepção de qualidade, de acordo com critérios de liberdade de expressão, criação artística e estética, e procura do conhecimento.

Os nossos Estatutos Editoriais consignam que a revista Lógos – Biblioteca do Tempo é uma publicação sem fins lucrativos ou ambições comerciais; é independente em relação a quaisquer orientações políticas, religiosas e ideológicas ou escolas teóricas; tem o objectivo de divulgar textos literários (ficção, poesia, recensão crítica, artigos de opinião, ensaios) e ilustrações de autor; as colaborações publicadas são da responsabilidade dos autores convidados.

Revista LÓGOS - Biblioteca do Tempo, a memória futura de experiências literárias da contemporaneidade.

Adília César, Setembro de 2021

sábado, 6 de março de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [11] por Adília César

 (...) Você, bem sei, acha isso risível. Mas que diabo! Você é um poeta, um orador, um lutador  e eu sou apenas um pobre homem (...).

                       

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

"Diário de Descobertas" - O surrealismo romântico de Vladimir Kush

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DIZER “PALAVRA”

é quase o mesmo que dizer “realidade”. A palavra é, está, constrói, destrói, vive e morre nas coisas deste mundo que nos parece tão real e de outros que imaginamos. A palavra dita, escrita, lida, imaginada. Se as coisas não tiverem um nome, temos mesmo a certeza que elas existem?

 

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DIZER “PALAVRA”

é quase o mesmo que dizer “humanidade”. A palavra é, está, constrói, destrói, vive e morre em cada homem e cada mulher. Se as ideias humanas não puderem ser evidenciadas pela linguagem (falada, escrita, lida e imaginada), temos mesmo a certeza que elas existem? E o ser humano, enquanto personificação de algo mais que a mera sobrevivência da espécie, existe sem as palavras? O que teria levado o grande Jean-Paul Sartre a deixar para as gerações futuras uma obra autobiográfica intitulada precisamente “As Palavras”? Disse ele: «continuo a escrever. Que outra coisa posso fazer? Nulla dies sine linea. É o meu hábito e é, também, o meu ofício. Durante muito tempo tomei a pena por uma espada; agora, conheço a nossa impotência. Não importa: faço e farei livros; são necessários; sempre servem, apesar de tudo. A cultura não salva nada nem ninguém, não justifica. Mas é um produto do homem: o homem projecta-se nela, reconhece-se nela; só esse espelho crítico lhe devolve a própria imagem.» Sim, o que nos resta?

 

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GOSTO DE PENSAR

que somos tantas palavras e também tantas linguagens, não esquecendo que a expressão e a comunicação são facilitadas através de diferentes códigos. Mas voltemos às palavras. Todas as palavras são importantes, as utilitárias e as estéticas, desde o som nítido das sílabas até ao seu eco. Por exemplo, é inverno e o dia apresenta-se muito nublado, com temperaturas inferiores a 5 graus; saio para a rua sem casaco, sinto o frio no corpo e arrepio-me; a sensação é desagradável. A percepção física do clima conduziu-me a um discurso meteorológico e utilitário. Mas a palavra pode ser mais do que isso, através da comunicação estética de uma intenção poética e assim, escrevo um poema:

“Contemplar as ideias como quem olha botões de rosa no tecto do jardim. Num lugar médio alguns espinhos predestinam-te aos acontecimentos e ocultam-se num plano profundo as raízes da linguagem. Ah, esplendor de sabedoria. Mas é o idioma da fome, algoz de todas as dúvidas, que te fustiga. Enrolas-te nesse destino cruel para a pele sentir o frio desde o primeiro inverno. É urgente sentir alguma coisa. Secam as pétalas das flores e há uma ideia de inverno que perdura, não se sabe se por um instante ou por toda a eternidade. Não se sabe ainda nada sobre esse imenso frio da ignorância.”

O que disse eu neste fragmento de linguagem que pretendia atingir a significação estética? E qual poderá ser a utilidade deste poema?

 

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PODEREI ESCREVER

o mundo todo como se fosse um imenso oceano. Gotas de água, gotas de significados. Uma gota de água, onde se condensam mil sentidos. Mas de que serve inventariar o possível da linguagem poética, se a ela não estiver subjacente a experiência emocional sobre a qual pretendo poetizar? Quero escrever sobre os pássaros, mas nunca vi a plenitude do voo da águia. Quero escrever sobre as flores, mas nunca cheirei o perfume de um jasmim a desabrochar. Quero escrever sobre o amor, mas nunca toquei o rosto do meu filho por nascer. E ainda que me disponha a sentir o que é apenas um desejo de sentir, devo ultrapassar a obviedade do discurso: este é o apelo do meu caráter intrinsecamente humano. Não há poesia sem dúvidas, sem questionamento e sem as divergentes linhas de resposta, mas alguém há-de sobreviver no profundamente humano e espiritual, entre abismos, quedas e cadeirões de veludo. A salvação pode estar na intencionalidade de um poema que se escreve a si mesmo através dos gestos metafóricos da minha mão. E depois, poderei fechar os olhos e descansar antes do abismo.

Adília César, 

in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__282

LÓGOS 10 - MAIO 2022 (ÍNDICE)